quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011
Balada de um coração desconcertado
Para ela, todo homem era um canalha. Todos mentiam, dissimulavam, escondiam-se. Ora no medo, ora na covardia.
Para ela, todo homem era menos homem do que podia ser: não olhavam no olho dizendo com o olhar o que de fato o olho via. Passavam outra mensagem para enganar o cérebro. Deles e dela.
Para ela, todo homem tinha verdadeira paúra de ser verdadeiro. Não se sentiam à vontade nus. Que fossem tímidos, vá lá, mas assim, tão irritantemente inverídicos? Difícil de acreditar que fosse natural. Eles eram naturalmente assim, digamos, esquisitos. E, para ela, a esquisitice não parava aí: eles tinham códigos próprios, em sua maioria indecifráveis, capazes de concorrer em grau de dificuldade com quaisquer hieróglifos. Isso para não falar da caligrafia. Eram mesmo ilegíveis.
Para ela, todo homem lavava o rosto de manhã com uma porção generosa de complicação, ainda que com cheiro de hortelã. Mas eles também eram tão absurdamente objetivos que o paradoxo virava um nó gigante e para sempre indesatável, de enforcar qualquer tentativa de compreensão.
Para ela, todo homem enganava, traía, se aproveitava — das situações e dela. Corriam da fidelidade como se todos os dias fosse São Silvestre. Nisso, ela admitia, eles eram bem rápidos, assim como no raciocínio e na arte do sumiço.
Para ela, todo homem não valia nem um dos números do telefone dela, que, infelizmente, não tinha zero. Tinham incertezas flutuantes a deriva, desejos múltiplos e simultâneos por todas as mulheres do mundo, paixão por jipe na garagem, dicionário próprio, descontrole emocional impetuoso ou controle insensível e frio das próprias emoções. Todos uns malabaristas desequilibrados e mulherengos, com alergia a compromisso ou ao simples conceito de exclusividade.
Para ela, todo homem era isso: genética embutida num DNA distorcido e infeliz, numa química mal explicada que podia explodir a qualquer momento, sem manual de instruções. Sempre querendo impressionar com uma espontaneidade premeditada, mas incrivelmente perfumados num fanatismo esportivo de dar nos nervos.
Para ela, todo homem era generalização, conteúdo pouco original diluído em massa, estatisticamente comprovado como sendo de valor questionável, que não merece aplicação ou investimento. Tinha cansado de ver casos e mais casos da espécie que, mais dia, menos dia, apresentavam os sintomas. Mas quem caía doente era sempre ela. Por isso tinha desistido de antídoto. O caso era mesmo crônico.
Para ela, todo homem era uma decepção em potencial quando não um doido neurótico. Uns passivamente calados, morando no mundo aéreo e distante das idéias; outros tagarelas insistentes soltando insensatez a torto e a direito. Era tão mais fácil falarem a verdade, abrirem o jogo, os olhos, o coração; dizerem sinceramente o que sentiam, com todas as letras, sílabas, palavras, gestos, beijos e abraços. Para ela, os homens não sabiam abraçar senão o próprio egoísmo e não se esforçavam para entendê-la com o mesmo afinco com que tentavam tirar a aliança do dedo enquanto escondiam a mão no bolso.
Para ela, todo homem era um joão-vai-com-os-outros, disparando intimidades hiperbólicas em rodas bêbadas de amigos sóbrios demais para saber que ela existia.
Mas, um dia, sua teoria foi traída pela prática, e ela ouviu um olhar sincero vindo em sua direção. E viu palavras tão descomedidamente reais atingindo suas inquietações, que tremeu. De medo ou de covardia, embaraçada em seu próprio vocabulário. E sentiu-se complicar, dizendo com o olhar coisas diferentes do que a boca dizia com gosto de hortelã. Travou sua espontaneidade, engoliu a caligrafia em monossílabos ressecados de timidez, soltou disparates e refreou a sinceridade numa paralisia incrédula. Não podia mesmo ir falando tudo assim, aquele monte de sentimentos em dia de feira, porque isso passa outra mensagem para o cérebro deles, o dela sabia.
Daquele dia em diante, para ela, todo homem era apaixonantemente desafiador. Então, ela se desequilibrou de seu malabarismo defensivo e deixou-se cair. Inebriada, caiu numa particularidade, dessas de neutralizar impressões. Ficou tão desconcertada com aquela exceção que nunca mais teve conserto. E, mesmo suspirando dúvidas, respirou uma certeza absoluta: ele podia ser homem, mas, para ela, ele era único.
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Texto retirado do blog Ideias na Janela, escrito por Kandy
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